Não sei por quê, mas hoje acordei algo nostálgica. Lembrei-me de ti, perguntei-me por onde andarás, se ainda estarás vivo. (Com a tua profissão nunca se sabe, se é que alguma vez se sabe alguma coisa.)
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Conhecemo-nos ainda eu frequentava o Secundário. Eu começara a minha actividade sexual há relativamente pouco tempo e só tinha andado por piças entre o indigente e o medianamente capaz. Tu eras oito anos mais velho, já trabalhavas e tinhas uma competência sexual e um conhecimento do corpo feminino como nunca eu antes experimentara. Começámos a namorar: um escândalo, dada a diferença de idades. E, em circunstâncias particularmente melindrosas para mim, que não vem ao caso detalhar, tornámo-nos, não apenas amantes, mas verdadeiramente próximos. Lembras-te?
Então eu entrei na Universidade e mudei-me para o Porto. Dois meses depois de eu me instalar na Cidade Invicta, tu visitaste-me pela primeira vez. (Tinhas estado fora de Portugal em trabalho.)
Apanhaste-me à saída da faculdade. Já era tarde, não deu para passarmos em casa a aplacar a fome um do outro, seguimos directamente para um jantar de curso com que já me comprometera. (Sendo mais velho e muito bonito e charmoso, fizeste enorme sucesso entre as minhas colegas.)
A noite continuou no Piolho. Estava lá um grupo de alunos de Erasmus e, aproveitando a tua ausência, um belga meteu conversa comigo. Era anódino, diria que quase pálido, noutro contexto passar-me-ia despercebido, mas era agradável e soube-me bem desenferrujar o meu francês depois de tantos anos. Já de volta, entretiveste-te a emborcar uísques uns atrás dos outros, cozinhando um ressentimento mudo. (O teu defeito, algum terias.)
A certa altura, soltaste:
— Quando é que o fedelho franciú desampara a loja?!
— Não é francês, é belga. E a loja talvez não queira ser desamparada — rematei, irritada com o teu tom de autoridade.
Voltaste para o teu copo, até que, num movimento que seria balético se não fosse primitivo, te atiraste ao rapaz. Não me lembro a que ponto chegou o vias-de-facto, porque em breve estáveis os dois no olho da rua, entre grande confusão.
Eu deixei-me ficar, indisponível para arbitrar disputas neandertais. Quando finalmente saí, bastante mais tarde, estavas à minha espera, no carro. Ignorei-te e segui o meu caminho, contigo atrás de mim em marcha lenta, tentando convencer-me a entrar:
— Para onde é que vais a pé a esta hora?
— Apanho um táxi!
— Não sejas infantil, Méssaline! Entra.
— Infantil, eu?!
A verdade é que estava frio e não tinha grande dinheiro de sobra na carteira. A contragosto, entrei.
— Para onde? — perguntaste.
No primeiro instante não percebi a pergunta, mas logo me lembrei. Com pouco mais do que monossílabos, fui dando as orientações para a residência universitária. Pelo caminho, tu desfiavas o rol de argumentos supostamente justificativos da tua atitude. Eu, amuada, interrompia o mutismo apenas para um «Vira aqui».
Chegámos à residência. Saí, batendo a porta do carro com força. Baixaste o vidro e perguntaste:
— Posso subir contigo?
Fiz-te um olhar que dispensava palavras. Virei costas e tu ficaste a ver-me desaparecer no interior do edifício.
No dia seguinte, ao fim da tarde, lá estavas de novo à saída da faculdade. Fingi não te ver, tu voltaste a insistir, eu voltei a entrar no carro.
— Pensei que o amuo já te tivesse passado.
— Pensaste mal. Deve ser da ressaca.
Tu reciclaste os argumentos da véspera, agora mais mansinho. Eu mantive-me muda até que te cansasses. Só quando te calaste é que eu falei:
— O que quero que percebas, Pedro, é que sou eu quem decide com quem me relaciono, sexualmente ou de outra forma. Eu não sou propriedade tua. Estou contigo enquanto isso me dê prazer. Se é para fazeres cenas tristes, armares-te em macho-alfa, estou fora.
Por essa altura estávamos já bastante perto da residência universitária. Com ar casual, disse-te:
— Este não é o caminho para minha casa; eu vivo na Baixa.
Lentamente, paraste o carro e olhaste para mim, os teus olhos progressivamente mais abertos, num misto de incredulidade e reconhecimento. Eu, serena:
— Ontem à noite deste-me boleia para a residência dos alunos de Erasmus. [pausa dramática] Passei a noite a foder com o belga.
Desviaste o olhar e, em silêncio, fixaste-te no volante, sem pestanejar.
— És cruel — silabaste por fim.
— É para que saibas que não mandas em mim — respondi, secamente.
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Este episódio não terminou a nossa relação — definiu a nossa relação. Fomos amantes por mais dois anos, até que te troquei inapelavelmente por outro. Pouco depois deixaste o país e nunca mais te vi.